Oi queridos, tudo bem?
Por aqui tudo certo. Tô postando pouco porque tô com alguns prazos estourando. Mas vai ficar mais tranquilo em setembro.
Fato é que ontem, tive que parar tudo que estava fazendo pra comentar uma matéria que li sobre a próxima novela das nove: o protagonista vai ter esclerose múltipla. Alguns festejam, outros recriminam. Eu... bom... eu sou gato escaldado e olho pra isso com medo e desconfiança, principalmente pelo tom que tem sido dado antes mesmo da estreia da tal novela. Esse texto foi publicado no meu blog na AME, mas também o reproduzo aqui, porque acho importante:
A Esclerose Múltipla e "As regras do jogo"
“A televisão brasileira, mais do que instrumento de divulgação de informação, é um meio de legitimação de temas/assuntos problematizados na sociedade. A teledramaturgia sinaliza as mudanças que ocorrem na sociedade, criando tramas de forma que o espectador consiga se reconhecer de alguma forma [...] A visibilidade midiática pode ser entendida como espaço de negociação de sentidos da sociedade, e as instituições midiáticas ligam os indivíduos desta sociedade, lançando temas a serem discutidos, que poderão produzir sentidos, sentimentos e mudanças sociais” (Bruna Rocha, 2012 – acesse aqui).
As palavras que abrem esse post é um trecho da minha dissertação de mestrado. Não, não vim aqui fazer propaganda dos meus trabalhos acadêmicos, mas essa semana é impossível não falar de telenovela e de representação depois da notícia que recebi:
“Alexandre Nero terá esclerose múltipla em 'A regra do jogo'” – nova novela das nove da Rede Globo
Quando li nasceram vários novos fios de cabelos brancos na minha cabeça só de pensar no que vem por aí...
Não, também não sou contra telenovela ou coisa do gênero. Como eu mesma digo nas muitas páginas da minha dissertação, a telenovela é um produto midiático com uma potência enorme. O problema é que essa potência enorme serve para o bem e para o mal. Como diz um dos autores que eu utilizo pra desenvolver minhas ideias, “ numa cultura contemporânea dominada pela mídia, os meios dominantes de informação e entretenimento são uma fonte profunda e muitas vezes não percebidas de pedagogia cultural: contribuem para nos ensinar como nos comportar e o que pensar e sentir, em que acreditar, o que temer e desejar – e o que não” (Douglas Kellner, A cultura da mídia, 2001, p. 10).
Também já li algumas pessoas dizendo que é ficção, que se tiver alguma coisa “errada” não tem problema. Então, vamos lá que eu desenho o problema pra você.
Desde 1965 a Rede Globo de televisão coloca no ar suas telenovelas. De lá até 2010 (meu levantamento foi até aí), foram 248 novelas, dessas, apenas 16 que apresentaram como personagens pessoas com deficiência. E todos foram ou vitimizados ou divinizados nas suas representações.
De 1965 até hoje, as deficiências e doenças são dadas a personagens como forma de castigo pelo mal que fizeram ou como forma de tornar esse personagem uma pessoa melhor, o que chamo de divinização. Há pouco mais de três meses escrevi um texto sobre a esquizofrenia dada a um personagem de uma novela das sete (leia http://goo.gl/HlyPCW ) como castigo. E a representação dele não foi diferente do errado senso comum de que todo esquizofrênico é perigoso.
E aí me pergunto, o que esperar dessa representação de pessoa com esclerose múltipla numa novela? Difícil de esperar algo maravilhoso depois desse histórico né?
E porque é tão ruim ter uma representação ruim do que é a esclerose múltipla? Bem, é ruim porque, como já diria o “papa” Stuart Hall, nós damos sentido às coisas conforme as representamos. As coisas, as doenças, as deficiências não tem um significado em si, elas passam a ter um significado quando as representamos de uma ou outra forma. Assim, “a cultura da mídia pode contribuir para a reprodução de discursos estereotipados e preconceituosos quando falamos em grupos minoritários (sexo, idade, classe, cor, habilidades), bem como pode propiciar uma visão mais positiva sobre esses grupos” (Bruna Rocha, 2012). Ainda, para os que dizem que não é real, lembro-vos que a telenovela, assim como a sua matriz, o romance folhetim, tem pretensão de real, e a isso se dá o nome de verossimilhança. Se ela não pretendesse parecer o real e fazer as vezes do real, as novelas seriam escritas com personagens marcianos, morando na lua... aí sim fugiria da vontade de real. Se ela não quisesse ser real, criava uma doença só pra novela, e não uma que milhares de pessoas convivem com e já acham bem difícil de conviver sem uma novela apresentando imagens distorcidas pra atrapalhar.
“Mas Bruna, eles podem fazer direitinho!” Podem! E eu realmente espero que façam. Mas aí, eu abro a tal reportagem sobre a novela e leio:
“A morte vai rondar Alexandre Nero novamente em “A regra do jogo”. Romero Rômulo, o protagonista da próxima novela das nove, vai descobrir ter esclerose múltipla depois de quase morrer enquanto transa com uma garota de programa. Na história, que estreia dia 31 de agosto, Romero vai sofrer com visão turva, desmaios e surtos em várias cenas. Ao ser levado para o hospital, ele vai ficar chocado com o diagnóstico.
[...] Com a proximidade da morte, Romero tira a menina da cadeia e se apaixona por ela”. (Fonte: Extra - grifos meus)
Sério gente, eu li e ri... ri alto. Afinal, ele quase morre transando com a guria por quê? Ela estava armada? Ela esfaqueia ele? Como assim quase morre de EM? Será que ele teve uma daquelas fadigas monstras e não explicaram direito que não se morre disso? Mééélllldelllllssss... sem cabimento. Também fiquei imaginando o que serão esses surtos em várias cenas. Me passou um milhão de cenas esdrúxulas. Mas, ok, eles podem fazer ele dizendo que está sentindo um novo sintoma, que não se acordou bem etc. Depois pensei: eles não vão dar o sintoma mais clássico da vida do esclerosado pro personagem, a fadiga. Até porque, se eles derem fadiga pra ele, se preparem pra uma novela tão agitada quanto as minhas tardes de verão...hahahahaha. (só pra deixar claro, as tardes de verão inexistem pra minha pessoa porque a fadiga come elas todas). A única coisa plausível aí é ele ficar chocado com o diagnóstico...
Piadas a parte, quando li a frase “com a proximidade da morte, blábláblá e se apaixona e blábláblá...”. Oi? Proximidade da morte porque? Tudo bem que pra morrer basta estar vivo. Mas a doença não traz a proximidade da morte.
Quando eu tive o diagnóstico, há 15 anos, li na internet que eu tinha mais ou menos 10 anos de vida pela frente. Eu já tô há 5 no lucro e pretendo ir muito longe nesse negócio, até porque, a EM não reduz significativamente a expectativa de vida da pessoa se comparada ao resto da população.
Isso tudo é provocado pela ignorância absurda de quem tá escrevendo a novela (a propósito, é o Sr. João Emanuel Carneiro... autor de A Favorita e Avenida Brasil... e conta com a direção de Amora Mautner, umas das melhores diretoras da emissora na minha opinião) e também de quem tá topando fazer. Quando se fala em doença, o roteiro tem sim que passar por especialistas. E quando eu falo em especialistas, estou falando de médicos, de fisioterapeutas, mas, principalmente, de quem vive com ela. E os atores, diretores etc tem sim que ver o que é viver a doença. Eles chamam isso de laboratório.
Porque agora, depois de 15 anos tendo essa doença e lutando para que as pessoas entendam que ela não é doença de velho, que não tem cura mas tem tratamento, que é possível viver com ela mesmo com todos os perrengues, que dá pra comer, transar, ter filho, casar, viajar, se divertir, estudar etc, que não é transmissível e mais um monte de coisa, eu vou ter que sentar do lado da minha vózinha, de 82 anos e explicar pra ela, de novo, que eu não vou morrer de EM. E que a morte me ronda assim como ronda todo mundo.
Como alguém que tem EM há tanto tempo, como uma mestre em comunicação social que estudou telenovelas e as implicações de representações de diferenças nelas, como doutoranda que estuda representações, discursos e identidades de pessoas em situação crônica de doença e como militante da conscientização sobre a esclerose múltipla, eu gostaria muitíssimo que essa representação respeitasse nossa luta, nosso cotidiano, nossas vidas. Claro que eles não têm como representar todas as pessoas com EM, porque cada uma é única. É só olhar as diferenças que temos aqui dentro de casa comigo e com o Jota. Mas respeitar a luta é fundamental. Isso eles podem e devem fazer! Mas, sinceramente, não espero muita coisa não. Sabe aquela coisa de “melhor não esperar nada porque se vier é lucro?”.
Conversei com alguns representantes de associações de EM no Brasil e descobri que ninguém tá prestando consultoria à rede Globo (se tem alguém, não é ninguém ligado a lugares que historicamente falam de EM, vivem com a EM, entendem de EM). Lembrando que as duas únicas novelas que apresentaram de forma respeitosa e educativa o que é ter uma deficiência ou doença foram Viver a Vida de Manoel Carlos com a personagem Luciana que tinha tetraplegia e a novela Caminho das Índias, de Glória Perez, com o personagem Tarso que tinha esquizofrenia; ambas contaram com consultoria de pessoas que passavam pela mesma situação.
Algo me diz que essa novela vai aparecer muito aqui nesse espaço e no meu blog pessoal. Não tenho visto telenovelas depois do mestrado porque li tanto sobre o assunto e vi tanta coisa que me enjoei. Mas essa aí, por motivos pessoais e profissionais, vou ver pra poder opinar.
Sei que tem gente dizendo que é melhor que nada. Eu confesso que as vezes eu acho o nada melhor... porque o nada não soterra anos de trabalho pela conscientização; o nada não acaba com tudo que já fizemos pra acabar com a ignorância. Meu medo é começar a ouvir: “mas não é assim? Mentira... é sim, eu vi na novela”. “Passou na televisão que é...” enfim, coisas do gênero.
É perigoso é porque por mais que a audiência de telenovelas esteja mais baixa e por mais que as pessoas entendam melhor que nem tudo que passa na TV é verdade, a audiência de telenovela é altíssima e a TV está presente em 95,1% dos lares brasileiros (IBGE, 2010). E porque ela é o principal meio de informação e formação da maioria das pessoas.
Um pedido que faço, inclusive aos ateus: Oremos!
Oi Bruna gostei do seu post sobre a nova novela da TV Globo, as ‘regras do jogo’. O seu medo e desconfiança sobre como vão abordar o assunto também me deixa preocupado! Vamos ver o que virá! Concordo com você quando escreveu que e “a telenovela é um produto midiático com uma potência enorme. O problema é que essa potência enorme serve para o bem e para o mal”. Estou na torcida para que esta potência seja para o bem! Eu sei que historicamente a TV Globo não tem se saído muito bem como você mostrou Muito Bem a partir do seu estudo do mestrado! Você levantou um ponto bem clássico para os portadores de EM e espero que a novela discuta Muito isso: a Fadiga e a questão social para o portador! Isto é importante para a definição do personagem e para a apresentação do personagem. Bjos. Rodrigo.
ResponderExcluirNa semana retrasada, o seriado Law and Ordem - SVU mostrava uma pessoa com EM completamente paralisada e que se comunicava com piscar de olhos. Na mesma semana, no seriado House, um paciente ouve que pode ter EM e fica desesperado por causa da doença terrível. Vamos ver se a novela pode dar alguma informação melhor do que essas ou se a Globo só vai querer se justificar por ter demitido sua funcionária.
ResponderExcluirNa série americana Scorpion a irmã do principal Walter tem Esclerose Múltipla. Eu acho que não falam muito da doença, não vi a temporada toda. O foco, com a relação a doença, é mais o principal ser um gênio que não consegue uma explicação para a doença. Mas, fica a dica de série para ver ;) passa no canal Sony aos domingos.
ResponderExcluirOlá. Eu acho que, mesmo se faltarem com rigor médico e científico no roteiro (o que historicamente será o mais provável), ainda assim, mencionar a EM em cadeia nacional, poderá ensejar a chance das instituições envolvidas com EM se manifestarem para corrigir conceitos eventualmente mal colocados. Até aqui meu lado otimista. Meu lado pessimista, diz que muitas bobagens serão ditas em nome da emoção barata e imediata. Em tempo: acompanho seu blog com admiração, respeito e carinho.
ResponderExcluirNoticiado no ScienceDaily em maio de 2015. O texto completo está no site
ResponderExcluir"http://www.sciencedaily.com/releases/2015/05/150520082624.htm"
"A drug that could halt the progression of multiple sclerosis may soon be developed thanks to a discovery by a team at the CHUM Research Centre and the University of Montreal. The researchers have identified a molecule called MCAM, and they have shown that blocking this molecule could delay the onset of the disease and significantly slow its progression. These encouraging results from in vitro tests in humans and in vivo tests in mice were published today in the Annals of Neurology. "We believe we have identified the first therapy that will impact the quality of life of people with multiple sclerosis by significantly reducing the disability and the disease's progression," said Dr. Alexandre Prat, lead author of the study, researcher at the CRCHUM, and professor in the Department of Neurosciences at the University of Montreal."
Oi Bruna,
ResponderExcluirseu post é de grande lucidez. Só gostaria de adicionar um ponto. Até agora, o que foi divulgado da novela são meros factóides de uma emissora desesperada por audiência.
Portanto, me parece que a teoria do 'vale tudo pela audiência' está em vigor.
Também me chama atenção o trecho que você menciona "Romero Rômulo, o protagonista da próxima novela das nove, vai descobrir ter esclerose múltipla depois de quase morrer enquanto transa com uma garota de programa."
Me parece possível a seguinte leitura: Romero passa mal por um motivo qualquer (desde um porre até um 'boa noite cinderela' mal aplicado), é socorrido ao hospital e ao se investigar o quadro do paciente, encontra-se a EM desconectada de absolutamente todo este contexto. (Se você assistiu House, sabe do que estou dizendo.)
Apoio integralmente ao seu pedido de oração (na condição de ateu). Não obstante, é necessário que tenhamos uma distância saudável do tema para não tensionarmos o assunto por demais.
Gosto muito dos seus posts apesar de não ter EM.
Olá, boa noite Bruna!!
ResponderExcluirLi seu post e concordo com você em gênero, número e grau.
Sou portadora há 23 anos e, como você, vivo bastante bem obrigada!!!
Me assusta muito essas abordagens televisivas, apesar de ter tido conhecimento, nem sei se correto, de que a Globo e o autor da novela estão tendo assessoria clínica (se podemos falar assim) de especialista em EM do Hospital Universitário Antônio Pedro, aqui em Niterói. Mesmo assim, ou até por isso, acho uma temeridade levar ao folhetim uma doença como essa, que tem tantas particularidades, tantas nuances, tantas sintomas......já imaginou depois do capítulo do primeiro surto, quantas pessoas, depois de uma dormência correrão para os hospitais, postos de saúde, atrás de neurologistas para o imediato diagnóstico de EM?
Meio irresponsável essa ideia de buscar atender uma parte da população "desprovida de voz", não concordo que seja por aí que conquistaremos os nossos direitos de pacientes , até por já ser macaca velha ou gata escaldada, tenho muita desconfiança dessas abordagens , mas até por não ter outro jeito, vamos ver no que vai dar. Não costumo acompanhar nenhuma novela, não tenho paciência para isso, minhas amigas dizem que, agora não haverá outro jeito, terei que assistir. Discordo, acho que agora é que tenho que realmente fugir da frente do aparelho de televisão, vou acompanhar o assunto pelos olhos dos outros e, pelo visto por seu blog.
Com o tempo, nos falamos.
Um grande abraço e muita saúde para você.
Sandia