Oi queridos, tudo bem?
Há exatamente um ano atrás escrevi um texto para ser publicado numa revista editada por uma amiga minha. Mas a revista morreu antes mesmo de sair seu primeiro número. E o texto que eu tinha escrito ficou ali paradinho e esquecido. Hoje, dando uma fuçada nuns arquivos do meu computador, acabei topando com esse texto que divido hoje com vocês. Quem lê o blog sempre vai identificar muitas coisas que eu já falei por aqui, esparramadas em vários posts. Espero que curtam ;)
A arte de ser uma diva
Na faculdade em que estudo, há grandes escadarias e apenas
um elevador. Os pobres mortais sobem e descem os numerosos degraus. Suam,
cansam, se arrastam. Eu tenho a chave do elevador. Não subo nem desço as
escadas. Não desarrumo um fio de cabelo sequer para chegar ao terceiro andar. Quando vou a alguma festa, ou show, não pego
fila. Entro na hora que quiser e tenho uma cadeira esperando por mim, de
preferência, na frente do palco. Sem empurra empurra. Sem bebida caindo no
vestido e sem borrar a maquiagem. Um luxo, não acham? Mas não, não sou filha de
nenhum magnata, nem alguma estrela de cinema. Mas sim uma diva. Uma diva
esclerosada. Não, também não sou louca. Esclerosada é porque tenho Esclerose
Múltipla.
Talvez você nunca tenha ouvido falar sobre Esclerose
Múltipla. Talvez tenha, e não se lembre. E, muito provavelmente, ligue o nome
esclerose à loucura ou demência. O fato é que a Esclerose Múltipla é uma doença
inflamatória crônica, desmielinizante e degenerativa do sistema nervoso
central. Com isso, ela interfere na capacidade de controlar funções como a
visão, a locomoção e o equilíbrio. Os sintomas podem ser leves ou severos e
aparecer ou desaparecer, imprevisivelmente. Não se sabe o que causa a Esclerose
Múltipla e não há cura, apenas tratamento. Não é uma doença fatal, nem
contagiosa. Essa doença afeta,
usualmente, adultos na faixa de 18-55 anos de idade. Como sou uma garota de
sorte, tive o diagnóstico por volta dos 14 anos. E me acostumei com esse nome, esclerose,
desde muito cedo.
E pensar que tudo começou quando eu tive um formigamento na
mão esquerda lá no ano 2000. Buscando o que podia ser aquele formigamento parei
no consultório de um neurologista. Um exame de ressonância magnética foi que
confirmou que eu tinha uma pequena lesão na mielina (a capinha que reveste a
medula). Na época eu fiz uma pulsoterapia (minha “amiga” até hoje), que é uma
dose muito alta de corticoide, durante cinco dias, para acabar com a inflamação
da lesão. O formigamento passou, fiz minha festa de 15 anos e, algum tempo
depois, meus dois braços formigaram, as pernas se cruzavam enquanto eu
caminhava e minha visão ficou embaçada. Em poucos dias meu corpo parou. Voltei
ao médico e, depois de um exame clínico e mais algumas ressonâncias, veio o
diagnóstico. Nunca vou me esquecer daquela cena de cinema: eu e minha mãe
sentadas na frente do médico, ele escrevendo algo num papel e, quando mostra o
papel para mim mãe diz: "é, acho que é isso"; no papel estava
escrito: esclerose múltipla. Na hora eu pensei: "Tô ferrada! Se o médico
não fala nem o nome, é porque deve ser uma merda muito grande!".
A Esclerose Múltipla é uma doença auto-imune, ou seja, o
próprio organismo reconhece a mielina como um corpo estranho, e aí se formam as
lesões. Sim, meu corpo é burrinho e ataca a ele próprio. Para facilitar o
entendimento, gosto de comparar a medula a um fio elétrico. A nossa medula
funciona como um fio elétrico que conduz os estímulos do cérebro para todo o
resto do corpo. E toda medula deveria ser "encapada", como uma boa
fiação, mas a medula de quem tem Esclerose Múltipla tem pequenas partes “desencapadas”
(desmielinizadas), aí já viu o estrago né. As informações não passam, ou passam
erradas, ou muito lentamente.
A partir desse diagnóstico foram muitos surtos (que é quando
essas lesões na mielina inflamam), algumas novas lesões, muitas pulsoterapias,
consultas, exames chatos, desagradáveis e doloridos, experiências com
medicações diferentes (todas injetáveis, infelizmente), tropeços e tombos
históricos.
Por conta da EM, tive que reaprender muita coisa que
aprendemos quando bebês. Desde pegar uma colher pra comer sem derrubar a comida
no chão, até caminhar. Primeiro tive que reaprender a ser dependente (não é
fácil depender de alguém 24h por dia, até pra ir ao banheiro). Depois, tive que
ir aprendendo meus limites e o quão independente eu conseguiria ser.
Hoje eu levo uma vida independente. Claro, com alguns
limites, principalmente motores. Vocês não imaginam a dificuldade que é pro meu
cérebro entender que, se a perna direita deu um passo à frente, é porque agora é
a vez da esquerda dar o passo. Esse pequeno delay me atrapalha um pouco, às
vezes.
Mas ter EM não me impediu de estudar, trabalhar, fazer
faculdade, especialização, mestrado e sabe lá o que me espera pela frente.
Também não me impediu de ir a todas as festas que eu quis (e que não quis
também), de tomar minha cervejinha gelada no verão ou um vinhozinho no inverno
(tudo com moderação). E muito menos me impediu de namorar e beijar muuuuito.
Claro que, tomar uma injeção intramuscular uma vez por semana
não é algo muito divertido. Mas confesso que me sinto o máximo por conseguir me
auto-injetar a medicação toda semana. Conheço gente por aí que desmaia só de
olhar a agulha. E sim, sinto algumas dores diárias. Causadas, principalmente
pela fadiga. Então, quando eu digo que não vou fazer alguma coisa porque
“prefiro evitar a fadiga”, não é força de expressão, nem piadinha, é verdade
mesmo. Afinal, por mais imprevisível que a doença seja, depois de tantos anos, eu
já sei até onde eu posso ir e o que eu posso fazer.
O fato é que a Esclerose
Múltipla me tirou algumas coisas, como a força muscular, e alguns movimentos
(como caminhar, por algum tempo). Com 18 anos, mesmo sem beber uma gota de
álcool (ok, talvez algumas gotinhas, às vezes), caminhava como uma bêbada,
cambaleando e me desequilibrando por aí. Com 20, resolvi comprar uma bengala
pra me ajudar a caminhar. E, lógico, quem não me conhecia, olhava com um olhar,
no mínimo, estranho. Deviam pensar que eu era algum tipo excêntrico.
Ter uma doença como
essa faz com que eu tenha algumas necessidades diferentes da maioria das
pessoas que eu conheço da minha idade (26 anos). E uma das maiores bênçãos da
minha doença, é também uma das maiores desgraças: ela não aparece.
Apesar de eu sentir
e saber que ela está comigo, a Esclerose Múltipla é invisível. E, como a
maioria das pessoas não acredita no que não vê, fica difícil explicar meu
comportamento para as pessoas. Acho, de certa forma, uma benção ela ser
invisível porque, sim, as pessoas são preconceituosas com tudo o que aparenta
ser diferente. E, por não aparecer de cara que tenho uma doença, demora um
pouco mais de tempo para aparecerem os olhares de pena ou pavor.
Eu entendo que
pareça pura lorota, uma jovem, bonita, inteligente, ajeitadinha e feliz (tá,
podem discordar de algumas características, se quiserem) dizer que não pode
subir uma escada, ou carregar uma sacolinha do supermercado porque tem uma
doença. Aí vem aqueles comentários: "carregar a sacola não pode,
mas ir pro bar beber cervejinha pode né?!" Tem dias que dá, tem dias que
não. E, vamos combinar, passar por tudo isso no seco, é dose né?
A maioria das
pessoas espera que as pessoas que tem alguma doença sejam feias, mal vestidas,
desgrenhadas, sofredoras e mal humoradas. Peço desculpas a essas
pessoas, afinal, não cumpro com esse papel de pessoa doente.
Ter Esclerose Múltipla em casa é muito fácil, afinal, todos
entendem o que eu tenho e que eu não tenho condições físicas de fazer faxina
(me safei dessa hein?). Mas explicar pras velhinhas nos ônibus que eu estou
sentada no banquinho reservado para velhinhos, grávidas, pessoas com
deficiência ou com criança de colo porque eu preciso e não porque sou uma jovem
mal educada, é complicado.
Uma vez, quase levei uma bolsada de uma senhorinha (sabe lá
Deus o que ela levava dentro daquela bolsa). E vocês não imaginam quantas
ladainhas eu já ouvi por conta disso. Porque, obviamente, ninguém tem a
delicadeza de perguntar. As pessoas já saem julgando, de cara.
E quando saio do supermercado sem nenhuma sacolinha e minha
mãe carrega tudo sozinha? Folgada é o mínimo que eu escuto (ou não escuto, mas
vejo nos olhos das pessoas que me fulminam enquanto eu saio leve e sorridente).
Eu já pensei seriamente em colocar um gesso no braço, pra
não ter esses olhares tortos todos os dias. Mas aí, depois de algum tempo, parei
e pensei: peraí, tu não tá fazendo nada de errado não! Só está vivendo tua
vida, tranquila, com direito às “regalias e caprichos” que a tua doença te
impôs.
E é aí que a arte de ser uma diva entra em ação.
E o que é ser uma
diva?
Bom, na minha
concepção, divas não correm e não suam. Divas não carregam compras do
supermercado, nem sacolas de butique.
Divas têm casas
especiais, com cômodos especiais, feitos sob medida para suas necessidades (ou
caprichos).
Divas não saltam do
sofá para atender o telefone, nem fazem nada sem planejar com antecedência.
Divas andam pelas
ruas do jeito que bem entendem.
Depois de me tirar
alguns movimentos e me fazer reaprender a fazer coisas simples do dia a dia, a
Esclerose Múltipla me mostrou que preciso de algumas regalias. A Esclerose
Múltipla fez de mim uma diva.
A verdade é que meu
corpo não responde à mesma velocidade que meus pensamentos. E não há teimosia
que o faça funcionar. Ele simplesmente tem o ritmo dele. E foi esse ritmo, mais
lento, que me ensinou a arte de ser uma diva.
Há quem pense que é
pura preguiça. Outros acham que é charminho. Mas meu corpinho é assim mesmo,
cheio de caprichos e desejos próprios que eu não posso controlar.
Agora, ao invés de
ficar me culpando ou martirizando por não poder fazer algumas coisas,
simplesmente não as faço, e ponto final. Divas são assim, fazem o que dá na
telha.
É bem verdade que
espera-se de uma diva uma bela produção, cheia de saltos altos e querequetês.
Eu mal consigo andar sozinha, quanto mais de salto alto. Mas ser diva é algo
que vem de dentro, e não do sapato que se usa.
Há algum tempo
atrás, se alguém me falasse para correr, senão me atrasaria ou perderia o
ônibus, eu diria: não posso, tenho esclerose múltipla.
Nesse caso, a
pessoa olharia para mim com uns dez tipos de espanto, e mais uns cinco de pavor,
daria um passo pra se afastar ou perguntaria se eu sei pra onde estou indo (afinal,
pra maioria das pessoas, EM é uma coisa que deixa a pessoa louca, sem saber o
que está fazendo). Eu me irritaria, com certeza.
Claro que eu não me importo de explicar o que é a Esclerose
Múltipla pra quem está interessado em saber. Mas tem dias e horas que não tenho
nem tempo, nem paciência. E, às vezes, os amigos me sugerem coisas esquecendo
que a Esclerose Múltipla existe em mim.
Então, hoje em dia,
eu simplesmente respondo: eu sou uma diva, e divas não correm.
P.S.: pena que não deu certo a revista né Dafne? Mas valeu pelo exercício da escrita ;)
P.S.2: a faculdade em que eu estudo agora tem dois elevadores... ninguém seria doido de fazer um prédio de 9 andares sem elevador né...